Escrevo estas palavras
sob considerável pressão mental, já que ao fim desta noite não mais existirei. Falido,
e com meu estoque das drogas que tornam suportável minha vida chegando ao fim,
não posso mais resistir à tortura; voarei da janela deste ático com destino à
rua esquálida que corre lá embaixo. Não pense que meu vício em morfina faz de
mim fraco ou degenerado. Quando terminar de ler estes rabiscos apressados, você
poderá ter uma ideia, apesar de nunca conseguir entender exatamente, do por que
minhas únicas opções são amnésia ou morte.
Dagon
H.P. Lovecraft (1919)
Tradução Lucas Dias (2019)
Foi em uma das partes mais amplas e menos frequentadas do grande
Pacífico que a carga a qual fui incumbido de supervisionar fora vítima da
fragata alemã. A Grande Guerra ainda estava no início, e as forças marítimas
dos hunos ainda não eram tão degradadas quanto ainda seriam; então nosso navio
era realmente valioso, enquanto nós, os tripulantes, fomos tratados com toda
justiça e consideração devidas a prisioneiros navais. Nossos captores eram
liberais quanto à disciplina, tanto que cinco dias após nossa captura consegui
escapar sozinho em um pequeno bote com água e mantimentos suficientes para um bom
tempo.
Quando finalmente me vi livre e à deriva, não fazia ideia da
minha localização. Como nunca fui um navegador competente, eu podia apenas
estimar vagamente pelas estrelas e pelo sol que eu deveria estar em algum lugar
ao sul da linha do equador. Não sabia nada a respeito de longitude, e não havia
ilhas nem costas à vista. O tempo se manteve aberto, e por incontáveis dias
naveguei sem rumo sob o sol escaldante; torcendo para cruzar algum navio ou ser
atirado às praias de algum lugar habitável. No entanto nem navio nem terra
apareceram, e a solidão frente à imensidão azul interminável começou a me
desesperar.
A mudança aconteceu enquanto eu dormia. Os detalhes eu nunca
saberei, pois meu sono, apesar de conturbado e cheio de sonhos, foi
ininterrupto. Quando finalmente acordei, me vi afundado até a metade em um
vasto pântano de lama escura infernal que se estendia em ondulações monótonas a
perder de vista, meu bote jazia encalhado a certa distância.
Pode-se imaginar que meu primeiro pensamento seria questionar
tão impressionante e inesperada mudança de paisagem, mas na realidade eu estava
mais aterrorizado que atônito; pois havia no ar e no solo podre algo sinistro
que gelou-me até o âmago. A área estava pútrida com as carcaças de peixes e
outras criaturas irreconhecíveis que protuberavam da maldita lama daquela
planície interminável. Talvez eu nem devesse tentar transmitir em meras
palavras o indescritível horror que paira no silêncio absoluto e na imensidão
estéril. Não havia nenhum barulho, e nada à vista fora a vastidão de gosma
preta, mas a completa imobilidade e homogeneidade da paisagem me oprimiram com
medo nauseante.
O sol ardia em um céu que parecia quase preto em sua crueldade
desanuviada; como se refletindo a tintura do lodo sob meus pés. Enquanto me
arrastava para o barco encalhado percebi que apenas uma teoria explicaria minha
localização: por meio de alguma erupção vulcânica, uma parte do solo oceânico
deve ter sido trazida à superfície, expondo regiões que jaziam escondidas sob
profundezas inimagináveis por incontáveis milhões de anos. Apesar de forçar ao máximo os ouvidos, não
conseguia escutar o mínimo barulho de oceano, tão grande era a extensão deste
novo terreno. Tampouco havia alguma ave para se alimentar da carniça.
Me sentei no barco, o qual estava virado e proporcionava uma
pequena sombra, enquanto o sol cruzava o céu, e por horas pensei e planejei. Ao
passar do dia, o chão se tornou menos grudento, e parecia que em breve secaria
o suficiente para permitir caminhadas. Aquela noite mal pude dormir, e no dia
seguinte embalei comida e água, me preparando para uma jornada em busca do mar
desaparecido e de um possível resgate.
Na terceira manhã julguei o solo seco o suficiente para caminhar
tranquilamente. O fedor dos peixes era enlouquecedor, mas eu tinha coisas muito
mais importantes com as quais me preocupar, então ignorei e saí audaciosamente
rumo a um objetivo desconhecido. O dia todo marchei firmemente para o oeste,
guiado por uma colina distante que se elevava acima de qualquer outro relevo
naquele deserto. Aquela noite acampei, e no dia seguinte continuei rumo à
colina, apesar de ela parecer praticamente à mesma distância desde que a
avistei pela primeira vez. Ao cair da quarta noite, cheguei à base do monte, o
qual acabou sendo muito mais alto do que parecia à distância. Um vale ao redor
dava a ele destaque em relação ao restante da superfície. Exausto demais para
escalar, dormi à sombra da colina.
Não sei por que meus sonhos foram tão vívidos àquela noite, mas
quando a lua estava ao alto da planície ao leste com sua fantástica
exuberância, acordei suando frio, determinado a não pegar no sono novamente. O
que vi nos sonhos foi demais e eu não passaria por isso novamente. Sob o luar,
percebi a tolice de viajar durante o dia. Sem a ofuscação do sol escaldante,
minha jornada teria custado menos energia; me sentia agora até capaz de encarar
a subida que me deteve ao pôr do sol. Peguei minha mochila e parti rumo ao
cume.
Eu disse antes que a monotonia da planície interminável gerava
um terror vago em mim; mas creio que maior fora o terror quando cheguei ao topo
da colina e me deparei com um cânion ou despenhadeiro imensurável no outro
lado, cujo fundo negro a lua ainda não subira alto o suficiente para iluminar.
Me senti à beira do mundo; vislumbrando por cima da borda um inimaginável caos
de noite eterna. Durante
o terror ocorreram-me trechos de Paraíso Perdido, da horrível escalada de Satã
através do reino das trevas.
Conforme a lua subia no céu, comecei a perceber que a queda do
vale não era tão íngreme quanto eu imaginara. Saliências e pedras protuberantes
formavam bons degraus para uma descida, e após algumas centenas de metros, o
declive se tornava bem gradual. Movido por algum impulso que não sei exatamente
descrever, desci com dificuldade pelas pedras e cheguei à encosta mais amigável
logo abaixo, admirando as profundezas Estigeanas nas quais nenhuma luz
penetrara ainda.
De repente minha atenção foi capturada por um vasto e único
objeto na encosta oposta, que subia íngreme cerca de cem metros à minha frente;
um objeto que refletia um brilho esbranquiçado proveniente da lua ascendente.
Rapidamente me convenci de que era apenas um pedaço gigante de rocha; mas eu
tinha consciência de que seu contorno e posição de forma alguma poderiam ser
obra da natureza. Um olhar mais detalhado me preencheu com sensações as quais
não sei expressar; pois apesar de sua enorme magnitude e de estar adormecido
naquele abismo no fundo do oceano desde que o mundo era jovem, pude perceber
que sem dúvidas o estranho objeto se tratava de um monólito de formas muito bem
definidas cujo enorme corpo fora trabalhado e possivelmente venerado por
criaturas vivas e pensantes.
Atordoado e amedrontado, mas não sem uma certa excitação digna
de cientistas e arqueologistas, examinei meu entorno com maior atenção. A lua,
agora próxima ao ápice, brilhava vívida e bizarra sobre as altas pontas que
cercavam a fenda, e revelou o fato de que um longo corpo de água fluía no
fundo, a perder de vista em ambas as direções, quase tocando meus pés na beira
da encosta. Do outro lado do abismo, as pequenas ondas lavavam a base do
monólito Ciclopiano; sobre cuja superfície eu agora conseguia avistar tanto
inscrições quanto esculturas rústicas. A escrita era em um sistema de hieróglifos
que eu desconhecia, e diferente de qualquer um que eu tenha visto em livros;
consistindo principalmente de símbolos aquáticos como peixes, enguias, polvos,
crustáceos, moluscos, baleias e afins. Vários caracteres obviamente retratavam
criaturas marinhas desconhecidas ao mundo moderno, porém cujas formas
decompostas avistei na planície de fundo de oceano.
No entanto, foram as esculturas que me mantiveram boquiaberto.
Plenamente visíveis do outro lado da água corrente devido a suas dimensões
imensas, estavam uma série de baixos-relevos cujos retratados excitariam a
inveja de Doré. Creio que estas coisas tinham intenção de retratar pessoas - ao
menos algum tipo de pessoa; apesar de que as criaturas estavam dispostas
brincando como peixes em água ou alguma gruta marinha, ou prestando homenagem a
algum templo monolítico que parecia estar sob as ondas também. Seus rostos e
formas eu não ouso detalhar; apenas a lembrança já me dá vertigens. Mais grotescos do que Poe
ou Bulwer poderiam sequer imaginar, eles possuíam maldita semelhança aos
humanos em linhas gerais, apesar das mãos e pés com membranas, lábios flácidos
e absurdamente largos, olhos vidrados e esbugalhados e outras características
menos prazerosas de lembrar. Outra curiosidade é o
fato de terem sido esculpidos totalmente fora de proporção em relação ao
cenário; uma criatura foi retratada matando uma baleia representada apenas um
pouco maior que ela mesma. Seus tamanhos e bizarrices me impressionaram,
como disse, mas em algum momento decidi que deveriam ser apenas deuses
imaginários de uma tribo primitiva de pescadores ou viajantes; alguma tribo
cujos últimos descendentes pereceram eras antes dos primeiros ancestrais dos
homens de Piltdown ou de Neandertal pisarem a Terra.
Extasiado pelo inesperado vislumbre de um passado muito além da concepção do
mais ousado antropólogo, fiquei admirando enquanto a lua lançava reflexos
disformes ao silencioso canal diante de mim.
E então eu vi. Com apenas uma pequena agitação denunciando sua
ascensão à superfície, a coisa deslizou para fora das águas negras. Vasto, polifêmico e odioso,
disparou como um estupendo monstro de pesadelos para o monólito, e então
balançou seus gigantes braços escamados enquanto abaixava a cabeça e soltou
rugidos indescritíveis. Acho que foi nesse ponto
que enlouqueci.
Lembro pouquíssimo da subida frenética pela encosta e
precipício, e da jornada delirante de volta ao barco encalhado. Acredito que
cantei durante boa parte do caminho, e gargalhei quando não conseguia mais
cantar. Tenho lembranças enuviadas de uma grande tempestade algum tempo depois
de eu alcançar o barco; de qualquer forma, sei que ouvi trovões e outros
barulhos os quais a natureza apenas pronuncia em seus tempos mais furiosos.
Quando voltei a mim, estava em um hospital em San Francisco.
Trazido pelo capitão do navio americano que resgatara meu bote no meio do
oceano. Durante a loucura acho que falei até demais, mas descobri que ninguém
dera importância ao que eu disse. Meus salvadores não sabiam nada sobre
erupções no Pacífico, assim julguei desnecessário insistir em algo em que não
acreditariam. Houve
uma ocasião em que procurei um renomado etnologista, e o diverti com questões
peculiares a respeito da antiga lenda filistina de Dagon, o Deus-Peixe; mas
percebendo que ele era irremediavelmente convencional, parei de pressionar.
É durante a noite, principalmente quando a lua está grande e
exuberante, que vejo a coisa. Tentei morfina, mas a droga apenas me trouxe
alívio momentâneo, enquanto me estrangulava com suas garras e me tornava seu
escravo. Então agora acabarei com tudo, registrei tudo por escrito para
informar ou ao menos divertir meus companheiros. Às vezes me pergunto se não
pode ter sido apenas uma miragem - um devaneio da febre enquanto eu jazia
desmaiado por insolação no bote descoberto depois de fugir dos marinheiros
alemães. Eu realmente me questiono, porém em resposta sempre recebo uma visão
aterradoramente vívida. Não consigo pensar no mar aberto sem ter calafrios
pelas coisas inomináveis que podem nesse mesmo instante rastejar e se contorcer
em seu leito gosmento, venerando seus antigos ídolos de pedra e esculpindo suas
próprias feições detestáveis em obeliscos submarinos de granito encharcado.
Sonho com o dia em que se levantarão das águas para arrastar para o fundo com
suas garras fétidas o que restar da insignificante humanidade devastada pela
guerra - o dia em que a terra afundará, e o fundo do oceano ascenderá em um
pandemônio universal.
O fim está próximo. Escuto um barulho na porta, como um imenso
corpo escorregadio a forçá-la. Não vai me pegar. Deus, aquela mão! A janela! A janela!
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